Que estamos em época de supressão de direitos fundamentais, isso não é novidade. Afinal, os noticiários brasileiros estampam as decisões estapafúrdias do Estado, ou daqueles que o representa, nos três poderes da nossa “república democrática de direito”. Também não é novidade para ninguém que minhas inclinações quanto ao direito são legalistas. É a nossa garantia (deveria ser) de que não seremos engolidos em um momento de insanidade estatal.
Costumo dizer aos meus clientes que o contrato se faz antes de começar o namoro, porque no começo, tudo é mil maravilhas. Depois que todos “relaxam” e conhecem a verdadeira faceta um do outro, as situações anômalas começam a aparecer. É aí que o acordo toma corpo e regula as desavenças.
O mesmo podemos dizer da Lei. A Lei é um contrato do povo com o Estado. É nela que está o que o Estado pode ou não fazer com os seus, e o que os seus podem ou não fazer ou exigir do Estado. Nesse contexto, quero trazer algumas Leis importantes, principalmente aquelas que versam sobre a possibilidade de o Estado realizar medidas punitivas.
Não por outra razão tivemos a edição da Lei 9.784/99, que versa sobre o processo administrativo federal, impondo limites ao Estado e criando direitos aos administrados. O mesmo podemos dizer da Lei 9.873/99, cuja finalidade é conferir segurança jurídica ao Estado e ao administrado de que os fatos ilícitos por ele cometidos serão processados e punidos em tempo razoável, sob pena da perda do direito do Estado de te punir.
A razão de Estado contra o direito administrativo
No direito ambiental, presenciamos hoje um cenário em que o Estado, especialmente representado pelo Ibama, busca invocar as chamadas “razões de Estado” com o intuito de alterar regras estabelecidas pela lei e pelo regime jurídico administrativo. É como se o guardião das regras ambientais pedisse licença para quebrar as regras jurídicas – uma contradição que expõe a fragilidade de nosso sistema: “Criei uma Lei que não dou conta de cumprir”. Mais engraçado ainda é ver ele mesmo dizer: “a prescrição é prejudicial para a administração pública”. Como dizem os mineiros: “Uai, sô!?”. Nem eu e nem mesmo um estagiário de direito do primeiro semestre tem dúvidas de que a prescrição é algo prejudicial para o poder punitivo (afinal, ele o cancela, não é mesmo?!), mas o problema não é do povo. Que cumpram o princípio da eficiência, mas não obrigue o judiciário tampar o sol com a peneira.
Até aí tudo bem. Eles assumem que a prescrição é prejudicial. Mas, o pior não é esse. O pior é a tentativa esdrúxula de “fugir da lei”, criando pseudo interpretações que mudam a natureza jurídica do instituto de embargo para tentar tirar ele da mira da Lei 9.873/99. Teve até mesmo um procurador federal que teve a audácia de dizer em uma live que o embargo pode ser aplicado sem a existência de ato ilícito, como se fosse uma medida espontânea da natureza, brotada diretamente do espírito da floresta. E não parou por aí. Afirmou, com a tranquilidade de quem toma café da manhã com o artigo 5º da Constituição, que esse embargo seria imprescritível, porque — vejam só — não é uma sanção, mas um gesto nobre e reparador do Estado, uma ação quase messiânica de regeneração ecológica (como se não tivesse efeitos punitivos).
Segundo ele, a Constituição autoriza isso tudo porque no art. 23 está escrito que todos devem proteger o meio ambiente, e disso ele extrai um poder implícito capaz de transformar qualquer medida de polícia ambiental em um mandamento perene, eterno, e, por que não, imune à legalidade formal. Claro, tudo em nome do “interesse público”, esse velho disfarce do príncipe maquiavélico para dizer: “eu posso porque quero, e quero porque posso”.
O que se vê, portanto, é uma tentativa habilidosa de fugir da expressa previsão do artigo 51 do Código Florestal, que demonstra a nítida natureza punitiva do instituto de embargo, da Lei 9.605/98, que elenca o embargo como sanção, e da Lei 9.873/99, que regula o prazo das medidas do poder de polícia. A interpretação para mascarar o instituto do embargo em outro regime jurídico que não o administrativo revela uma estratégia preocupante para contornar limites legais.
Mas surge a pergunta fundamental: se o embargo não é oriundo do Direito Administrativo, de qual ramo seria? Quem o determina? O juiz ou a Administração Pública?
Eu realmente queria compreender.
A metamorfose ambulante do argumento estatal
Como na letra de Raul Seixas, em “metamorfose ambulante”, o Estado parece mudar de “opinião jurídica” conforme lhe convém. Hoje defende a legalidade estrita para punir, amanhã a flexibiliza para não perder o prazo da regra criada por ele próprio. Esta inconsistência argumentativa revela não um compromisso com valores jurídicos, mas com a preservação do poder institucional protecionista a qualquer custo. Questão política. O direito que fique para lá.
É o Estado que não deve manter a palavra dada, violando suas promessas, quando isso se tornar prejudicial ou cessar as razões de sua proclamação, no sentido de enganar os cidadãos.
Em nome de uma suposta “função ecológica do embargo”, o Estado procura consolidar medidas restritivas perpétuas. É importante lembrar que nem mesmo a proteção ambiental, por mais nobre que seja, pode justificar a criação de regimes paralelos de sanção administrativa que escapem à legalidade, aos controles democráticos e aos limites temporais estabelecidos pelo legislador.
Assim como testemunhamos recentemente a criação de protocolos pelo CNJ para julgamento de ações ambientais, também vemos o Ibama tentando estabelecer um regime de exceção para seus atos administrativos. Em ambos os casos, sob o nobre pretexto da proteção ambiental, assistimos a uma perigosa flexibilização dos limites impostos ao poder estatal.
Pau que bate em Chico, bate em Francisco.
A prescrição como garantia fundamental
A prescrição administrativa não é mero detalhe processual, mas garantia estruturante do Estado de Direito. Quando o Ibama tenta contornar os prazos prescricionais, revela-se o problema real: a ineficiência da própria Administração em concluir seus procedimentos tempestivamente, transferindo ao administrado o ônus de uma estrutura estatal deficiente. “Putz, foi mal. Vacilei. Mas assim, vamos manter esse negócio desse jeito aí, com sua terra embargada, tudo certo?”.
Assim, um príncipe prudente não pode, nem deve, guardar a palavra dada, quando isso se torna prejudicial ou quando deixem de existir as razões que o haviam levado a prometer.
É preocupante observar como a Administração confunde a pretensão punitiva do Estado com a obrigação de reparar o dano ambiental. Enquanto a segunda é imprescritível por força constitucional, a primeira submete-se aos prazos legais como qualquer outro ato administrativo do poder de polícia. A distinção não é apenas teórica, mas essencial para a segurança jurídica.
Estamos testemunhando a criação de uma espécie de “Direito Administrativo Ambiental de Exceção”, onde as regras normais do jogo jurídico são flexibilizadas sempre em favor do poder estatal. Faz lembrar as palavras de Rui Barbosa, que já alertava contra aqueles “que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado“.
Os impactos econômicos da eternização do embargo
Os embargos imprescritíveis têm consequências econômicas concretas: paralisam setores produtivos inteiros, especialmente no meio rural, sem oferecer perspectiva de resolução. O dano não se limita às empresas afetadas, mas estende-se a cadeias produtivas inteiras, comunidades locais e ao desenvolvimento regional.
Fosse o Código Florestal exequível no que tange às áreas consolidadas. Fosse o Cadastro Ambiental Rural analisado em menos de um mês. Fossem os requerimentos administrativos apreciados pela Administração, sequer teríamos a discussão sobre prescritibilidade ou não da medida de embargo. A discussão seria apenas sobre “regularidade ambiental” e nada além disso. Fora que, no mundo fático, na maioria das vezes temos a bendita regularidade: os percentuais de reserva legal estão respeitados e as áreas de preservação permanente protegidas. O que falta é o tal do “papel” analisado, e adivinha para quem sobra a conta? Mas não é assim, e daí com razão os produtores terem que levantar esses embargos pela via prescricional ou outra tese que suma com o ato administrativo.
Fato é que o reconhecimento da prescrição dos embargos administrativos não compromete a proteção ambiental. Primeiro, porque não impede nova fiscalização e eventual imposição de novo embargo caso se constate a continuidade ou reincidência de ilícitos ambientais. Segundo, porque a obrigação de reparar o dano permanece exigível pela via judicial adequada – a ação civil pública ambiental, cujo objeto é imprescritível.
Assim como ocorre com os enunciados de eventos setoriais que começam a orientar decisões judiciais, também os embargos eternos criam uma fonte informal de direito que compromete a segurança jurídica. Em ambos os casos, assistimos à erosão de garantias fundamentais sob o manto de boas intenções (diz a autarquia que não julga os processos em tempo razoável).
O princípio da legalidade e o Estado que se acha acima da lei
A tese do embargo imprescritível segue a mesma lógica dos recentes enunciados da “Justiça Climática”, em que o setor produtivo não foi chamado para discutir: criar um regime de exceção onde o Estado está sempre certo e o administrado sempre errado. Quando o Ibama sustenta a imprescritibilidade de seus embargos, está essencialmente pleiteando um regime de exceção para seus atos administrativos, colocando-os acima do controle jurisdicional e das regras gerais de prescrição que o legislador democraticamente estabeleceu para todos os órgãos da Administração Pública Federal.
A segurança jurídica não é um privilégio do particular, mas uma garantia da sociedade. E esta garantia está sendo sutilmente corroída por iniciativas bem-intencionadas, mas potencialmente devastadoras para a verdadeira estabilidade das relações jurídicas.
Fica evidente que o Estado é, de fato, um mau perdedor. Ele cria a regra e tá dando um “jeitinho” de fugir dela. Não podemos permitir que, em nome de um interesse público abstrato, sejam sacrificados direitos concretos e garantias fundamentais dos cidadãos. É nossa responsabilidade defender a integridade do sistema jurídico contra tentativas de flexibilização que, por mais bem-intencionadas que pareçam, acabam por minar as fundações do Estado de Direito.
Como disse certa vez: “Justiça é justiça. Não existe Justiça Climática, Justiça Disso, Justiça Daquilo.” Da mesma forma, não existe um Direito Administrativo para o Estado e outro para os particulares. O mesmo ordenamento jurídico que protege o meio ambiente também garante a segurança jurídica, a propriedade privada e a livre iniciativa. Conciliar esses valores é o desafio de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
O que fortalece o direito é o respeito ao direito
Atuo no direito ambiental há mais de uma década, desde a época em que era servidor da Justiça Federal (2014). Nesse tempo, venho observando com preocupação certa tendência interpretativa que busca estabelecer a imprescritibilidade dos embargos ambientais. Tal interpretação, embora revestida de nobres intenções preservacionistas, cria perigosos precedentes para nosso sistema jurídico – algo como construir uma casa na árvore usando as próprias raízes como matéria-prima.
A prescrição não é um “escape” para infratores, mas uma garantia fundamental do Estado de Direito. Quando estabelecemos que qualquer medida administrativa pode perdurar indefinidamente, estamos tacitamente aceitando que o Estado pode atuar fora dos limites temporais que ele próprio se impôs através da Lei 9.873/99. É como se o Estado apontasse para si mesmo no espelho e dissesse: “Regras? Que regras? Eu não te conheço!”
A tentativa estatal de redefinir a natureza jurídica do embargo para esquivar-se dos prazos prescricionais revela uma estratégia preocupante: transformar o que claramente é uma medida administrativa, prevista no art. 72 da Lei 9.605/98, em algo “sui generis”, supostamente imune aos controles temporais estabelecidos democraticamente pelo legislador. É um impressionante exercício de malabarismo hermenêutico que faria qualquer circo contratar nossos procuradores federais no ato.
O reconhecimento da prescrição dos embargos administrativos não significa abandonar a proteção ambiental. A obrigação de reparar o dano ambiental permanece imprescritível, conforme pacificado pelo STF no RE 654.833/AC (Tema 999). O Ministério Público e demais legitimados mantêm à disposição o instrumento da ação civil pública para exigir a recuperação das áreas degradadas, independentemente do tempo transcorrido. Curioso como o Estado consegue distinguir perfeitamente entre sanção e reparação quando isso lhe convém, mas sofre de repentina amnésia conceitual quando o tema é prescrição.
Além disso, caso persistam atividades lesivas, nada impede nova fiscalização e embargo. Nada impede que se o dano realmente seja reparável, seja proposta uma ação civil pública com medidas liminares. O que não se pode admitir é a perpetuação de uma medida administrativa cujo fundamento jurídico foi extinto pelo transcurso do tempo, convertendo uma restrição temporária em virtual confisco perpétuo (já que ele não faz seu papel, não analisa o CAR, não faz o termo de compromisso do PRA). É como manter alguém preso após o cumprimento da pena só porque “ele parece suspeito e pode voltar a delinquir”.
A eficiência da administração pública, princípio constitucional, impõe que os processos sejam concluídos em tempo razoável. Quando o Estado transfere ao administrado o ônus de sua própria ineficiência, subvertemos a lógica do sistema. Como diria meu avô, “não se pode pedir para o time adversário jogar de mãos amarradas só porque você esqueceu de treinar para o campeonato”. Ou, numa versão mais burocrática: “Lamentamos informar que sua propriedade ficará perpetuamente embargada porque nosso departamento de análise de recursos está sobrecarregado desde o advento do Código Florestal que criamos 2012.”
Um sistema de proteção ambiental sustentável não se constrói com medidas arbitrárias ou exceções ao regime jurídico-administrativo, mas com aplicação consistente das normas existentes, procedimentos administrativos céleres e efetivos, e uso adequado dos instrumentos judiciais disponíveis para a reparação dos danos. É curioso como para alguns, o caminho mais curto para proteger o meio ambiente parece ser sempre o desvio das garantias fundamentais.
A verdadeira força do Direito Ambiental não está em dobrar as regras do jogo em nome da causa, mas em demonstrar que podemos proteger nossos ecossistemas dentro do marco constitucional estabelecido, respeitando simultaneamente a natureza e os fundamentos do Estado Democrático de Direito. Afinal, que exemplo damos quando, para proteger árvores, cortamos as raízes do próprio ordenamento jurídico?
Reconhecer a prescrição do embargo não significa dar um “passe livre” à degradação. Significa apenas reforçar que, num estado de direito, todos – inclusive o Estado – estão sujeitos às mesmas regras. E isso, ironicamente, acaba fortalecendo a própria causa ambiental, ao evitar que ela se torne sinônimo de arbitrariedade. Porque, convenhamos, ninguém respeita um árbitro que muda as regras no intervalo só porque seu time está perdendo.
Entendo perfeitamente a preocupação dos magistrados e procuradores com a proteção do meio ambiente. Ela é legítima e constitucional. Compartilhamos todos esse objetivo comum. Mas ao elastecer a lei e criar interpretações que fogem do texto normativo, mesmo com as melhores intenções, abrimos precedentes que podem se voltar contra a própria integridade do sistema jurídico que juramos defender. O verdadeiro serviço que podemos prestar à causa ambiental e à sociedade não é através de exceções cuidadosamente talhadas para cada nova dificuldade, mas pelo aperfeiçoamento das instituições, pelo zelo na aplicação tempestiva das normas existentes e pelo respeito inegociável ao devido processo legal. Pois no dia em que a exceção virar regra, a própria noção de Estado de Direito terá se tornado a mais ameaçada das espécies.
Exemplos não nos faltam, não é mesmo?