O Ibama, os bilhões e o STJ: quando o direito vira palco de sussurros políticos

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O esconde-esconde processual

O caso das intimações por edital do Ibama revela muito sobre como as instituições brasileiras por vezes se relacionam com o princípio da legalidade. De 2008 a 2019, a autarquia adotou a prática sistemática de intimar por edital os autuados para apresentação de alegações finais – uma espécie de “jogo de esconde-esconde processual” onde só o órgão ambiental sabia as regras. O procedimento, aparentemente amparado pelo art. 122 do Decreto 6.514/2008, contrariava frontalmente o art. 26, §4º da Lei 9.784/99, que limita a intimação ficta a situações excepcionais.

Não é bem assim…

Os tribunais brasileiros não compraram essa tese criativa. O TRF-1, em diversos julgados como na Apelação 0013014-51.2013.4.01.4100/RO, invalidou autuações por cerceamento de defesa. O TRF-4, sob relatoria do Desembargador Leandro Paulsen, firmou entendimento de que o Decreto 6.514/2008 extrapolava os limites da Lei 9.784/99 – uma forma elegante de dizer que o decreto tentava dar um “jeitinho brasileiro” na pirâmide normativa.

Essa posição alinhava-se à jurisprudência do STF, que desde o RE 157.905/SP (1997) considerava inconstitucional a ciência ficta em procedimentos administrativos. O STJ seguia a mesma orientação, como demonstrado no AgInt no AREsp 1.701.715/ES (2021) – uma unanimidade jurisprudencial quase tão rara quanto eclipse solar.

A luz interna…

Diante dessa jurisprudência, o Ibama editou o Despacho 11996516/2022-GABIN, suspendendo a aplicação da Orientação Jurídico-Normativa 27/2011. Era como dizer: “ok, vamos parar de fazer o que sabíamos que não podíamos fazer… agora que todos os tribunais já disseram que é ilegal”. O despacho não determinava a anulação automática dos processos, mas sim sua revisão caso a caso – uma abordagem sensata, ainda que tardia.

Apocalipse da autarquia ou tempestade em copo d’água?

O TCU, ao analisar a questão no processo TC 020.729/2022-7, validou a legalidade do despacho. Contrariando as manchetes apocalípticas sobre “anistia ambiental”, o Tribunal constatou que apenas 6,98% dos autos de infração com valores superiores a R$ 45 milhões seriam potencialmente afetados. Considerando que a taxa de recuperação de multas do Ibama historicamente não ultrapassa 0,53% (número que faria qualquer contador de empresa privada ser demitido imediatamente), o impacto financeiro efetivo seria mínimo.

O episódio ganhou novos capítulos em 2023, quando o STJ promoveu significativa guinada jurisprudencial. A 2ª Turma, no REsp 2.021.212, e posteriormente a 1ª Turma, no REsp 1.933.440, passaram a validar as intimações editalícias realizadas sob a égide do Decreto 6.514/2008. Esta mudança abrupta culminou na afetação da matéria como repetitiva no Tema 1329 – um plot twist que deixaria os roteiristas de “Succession” com inveja.

Plot twist jurídico: o STJ muda de ideia porque… razões!?

Essa reviravolta jurisprudencial suscita importantes reflexões sobre segurança jurídica. Parece particularmente problemático que um tribunal superior promova alteração tão substancial em sua jurisprudência sem apresentar fundamentação robusta. Mais preocupante ainda quando tal mudança ocorre em contexto de transição política e sob pressão midiática – coincidências quase tão improváveis quanto ganhar na loteria.

O mito dos 29 bilhões em multas perdidas

A magnitude do problema é frequentemente superdimensionada. A alardeada cifra de “R$ 29 bilhões em multas” não resiste a um exame técnico. O TCU, ao analisar casos concretos como o do Santander (R$ 47,5 milhões) e da Rumo Malha Norte (R$ 25,5 milhões), constatou que os autuados efetivamente exerceram seu direito de defesa, apesar da intimação por edital.

Prescrição: vilã ou heroína incompreendida?

A prescrição, frequentemente retratada como a vilã do filme ambiental (logo após o agronegócio e antes do garimpo), é instituto fundamental do Estado de Direito. Prevista na Lei 9.873/99, estabelece limites temporais ao poder punitivo estatal. Quando o Ibama atribui à prescrição a responsabilidade por sua baixa arrecadação, desvia o foco de problemas estruturais em sua atuação fiscalizatória – como culpar o termômetro pela febre ou o espelho pela calvície.

“Tecnicalidades” que a Constituição chama de direitos fundamentais

As nulidades processuais, como a intimação irregular, contaminam todo o processo, conforme determina o art. 26, §5º da Lei 9.784/99. Este efeito não constitui “brecha” ou “tecnicismo”, mas garantia essencial. A prescrição intercorrente, por sua vez, sanciona a inércia administrativa, não o autuado que busca seus direitos.

O caso evidencia tensão persistente entre legalidade e eficiência na administração pública brasileira. A guinada jurisprudencial do STJ representa precedente preocupante, que fragiliza a segurança jurídica e o princípio da legalidade estrita em matéria sancionadora.

Em última análise, o verdadeiro problema não está no reconhecimento de nulidades processuais ou na prescrição, mas na ineficiência estrutural do sistema. Um sistema que recupera apenas 0,53% das multas aplicadas apresenta falhas muito mais profundas que não se resolverão com flexibilização de garantias processuais – é como trocar os pneus quando o problema está no motor, ou pior, quando o carro já foi para o ferro-velho.

A esperança é a última que morre…

O Tema 1329 do STJ será oportunidade crucial para definir qual valor prevalecerá: a estrita legalidade ou a chamada “efetividade” obtida à custa de garantias fundamentais. Que os ministros façam uma escolha à altura da relevância da questão – e que não seja mais uma decisão de ocasião.

Escrito por

Diovane Franco

Advogado atuante em Direito Ambiental, graduado pela Universidade Católica Dom Bosco, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Faculdades de Ciências Gerenciais e Jurídicas de Sinop. Também é pós-graduado em Direito Administrativo, com ênfase em controle da administração pública em prol dos particulares, aplicando seu conhecimento sobre Direito Administrativo na defesa de produtores rurais em questões ambientais. Também possui grande experiência em Direito Tributário. Deixou a carreira de servidor público na Justiça Federal (TRF-1 e TRF-3) para se dedicar exclusivamente à Advocacia Ambiental. É sócio-fundador do escritório Farenzena & Franco Advocacia Ambiental, dedicado exclusivamente à defesa de pessoas físicas e jurídicas acusadas de infrações contra o meio ambiente, nas esferas administrativa, cível e penal. Atua pujantemente em execuções fiscais de cobrança de multa decorrente de processo administrativo ambiental, elaborando e desenvolvendo embargos à execução, exceção de pré-executividade, bem como eventual ação anulatória ou declaratória visando à extinção de improcedência de execuções fiscais. É especialista em elaboração de defesas e recursos administrativos para cancelar autos de infração ambiental e sua respectiva multa, bem como termos de embargo ambiental, com maior ênfase nas infrações ambientais de desmatamento na Floresta Amazônica.
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