O Código Florestal na UTI: treze anos de agonia sob o número de mau agouro

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A Lei 12.651/2012, conhecida como o novo Código Florestal, completa, neste dia 25, treze anos de vigência – um número tradicionalmente associado ao azar, e que neste caso se mostra profético. Como em uma sexta-feira 13, o Código Florestal encontra-se entubado em uma UTI burocrática, vítima de um mal agouro que parece persegui-lo desde sua concepção. Coincidentemente, treze também é o número que identifica os principais opositores históricos do agronegócio brasileiro, cujas políticas frequentemente privilegiaram a burocracia sobre a produtividade rural, a invasão de terras sobre a segurança jurídica, o conflito sobre a pacificação.

O desafio é monumental: estamos falando de gerenciar 98,3% do território brasileiro como área rural, a quinta maior extensão de terras do planeta, que abriga aproximadamente 28% de toda a vegetação mundial. Uma riqueza natural ímpar, sob responsabilidade de uma legislação que não consegue sair do papel.

Na ala de terapia intensiva do Hospital das Políticas Públicas, o Código Florestal Brasileiro permanece entubado. Na porta do quarto, o número 13 parece anunciar o mau presságio. Seu prontuário é desalentador: dos quase oito milhões de propriedades inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), apenas 1,3% foram validadas e somente 27% passaram por algum tipo de análise. Em termos práticos, aproximadamente 73% das propriedades rurais do país estão em um limbo administrativo, sem qualquer avaliação sobre sua conformidade ambiental.

Ao redor do leito, seus filhos – os produtores rurais – permanecem acorrentados com treze voltas de correntes burocráticas. Estas correntes os impedem tanto de abandonar o pai moribundo quanto de efetivamente ajudá-lo. Estão ali, a poucos metros, assistindo o penar do genitor, sem poder aplicar os procedimentos que poderiam salvá-lo.

E para piorar o quadro, um enfermeiro vestindo uma camisa com o número 13 disfarçado de cuidador passa a ministrar veneno no soro do paciente: a ADPF 743. Esta ação, que tramita como um litígio estrutural, discute de forma ampla as medidas voltadas ao combate ao desmatamento ilegal, a proteção da biodiversidade e o controle de emissões de gases de efeito estufa.

Recentemente, dois partidos políticos requereram ao ministro Flávio Dino que “o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima seja expressamente autorizado a cancelar de imediato os cadastros ambientais rurais das propriedades em que se identifique desmatamento ilegal pelos sistemas do Prodes e Deter”. Ademais, a ação também abre caminho para a desapropriação de propriedades rurais onde sejam comprovadas práticas de desmatamento ilegal, estabelecendo um duplo veneno administrado pelo enfermeiro: cancelamento do CAR e perda da propriedade.

O Programa de Regularização Ambiental (PRA), que deveria ser o caminho para a adequação das propriedades rurais, transformou-se em um entrave burocrático. Muitos estados sequer implementaram seus PRAs, enquanto aqueles que o fizeram criaram processos complexos, onerosos e ineficientes, como se fossem treze labirintos superpostos.

O que torna o pedido formulado na ADPF ainda mais perigoso são os aspectos técnicos ignorados pelos seus autores. Como bem sabemos, os “alertas” de desmatamento gerados pelos satélites Prodes e Deter têm baixa acurácia, sobretudo no que diz respeito ao Deter, cujos alertas não passam por validação. No caso do Prodes, a validação ocorre apenas por amostragem, implicando em margem de erro significativa. Há, ainda, milhares de falso-positivos nos registros. Como se não bastasse, esses sistemas não conseguem verificar se o desmatamento possui licença ambiental do órgão competente.

À primeira vista, o cancelamento do CAR por meio dos alertas de desmatamento parece uma medida benéfica. Contudo, como o enfermeiro que injeta veneno no soro, esta decisão pode se tornar a primeira autorização para aplicação de sanção administrativa ambiental sem previsão legal, sem probabilidade razoável quanto à existência do ilícito e sem que decorra do exercício regular e válido do poder de polícia.

O enfermeiro parece ter concluído um curso de treze etapas em como complicar o que poderia ser simples. Um dos procedimentos mais nocivos deste enfermeiro é a tentativa de transformar um sistema de alertas com falhas técnicas significativas em gatilho tanto para cancelamento do CAR quanto para desapropriações, sem considerar as garantias constitucionais do direito de propriedade e do devido processo legal.

A validação dos alertas de desmatamento, no âmbito do Prodes, é realizada por técnicos de geoinformação que trabalham para o Inpe, que não é um órgão integrante do Sisnama, conforme exige o artigo 70, §1º da Lei 9.605/98. Enquanto a Suprema Corte avalia esses novos pedidos, o mecanismo central previsto no Código Florestal – o sistema declaratório do CAR e a implementação efetiva do PRA – continua emperrado. É como ministrar treze medicamentos diferentes para um paciente que sofre de uma única doença: não apenas não ataca a causa real do problema, como cria novas complicações potencialmente fatais.

Um precedente importante existe na sala ao lado: o Sistema de Georreferenciamento de propriedades rurais, que enfrentou problemas semelhantes após a Lei 10.267/2001, mas recuperou-se quando adotou o modelo declaratório em 2013. Desde então, centenas de milhares de propriedades foram certificadas, com menor esforço administrativo e sem prejuízo do controle efetivo.

A solução para retirar o Código Florestal da UTI já está prevista na própria legislação. O artigo 6º do Decreto 7.830/2012 estabelece expressamente a natureza declaratória do CAR:

“Art. 6º A inscrição no CAR, obrigatória para todas as propriedades e posses rurais, tem natureza declaratória e permanente, e conterá informações sobre o imóvel rural, conforme o disposto no art. 21.”

Adicionalmente, o artigo 66 da Lei 12.651/2012 permite a regularização da Reserva Legal independentemente da adesão ao PRA. Estas disposições, se efetivamente aplicadas, permitiriam romper as treze voltas das correntes burocráticas que mantêm os proprietários rurais impedidos de implementar as ações de recuperação ambiental.

Enquanto o Código Florestal permanece na UTI, recebendo remédios ineficazes e venenos disfarçados, as pressões aumentam. A União Europeia já exige atestados de saúde ambiental para aceitar produtos brasileiros. As instituições financeiras condicionam financiamentos à comprovação de regularidade ambiental. E como comprovar a regularidade ambiental se exigem atestado do Estado, a pessoa que ministra o veneno?

Para agravar a situação, o cancelamento do CAR, tendo caráter de sanção, deveria ter previsão em lei como requisito de legalidade na sua adoção por ente público, conforme o princípio da reserva legal para o exercício do poder de polícia. As sanções administrativas ambientais estão previstas no artigo 72 da Lei 9.605/98 – multa, embargo, apreensão, suspensão de venda de produto – mas a suspensão do Cadastro Ambiental Rural não consta no rol dessas sanções. Soma-se a isso o fato de que, quando um CAR é suspenso, há dificuldades operacionais de significativa complexidade para o levantamento da suspensão, haja vista que o Sistema do Cadastro Ambiental Rural (Sicar) sofre com históricas inconsistências, perda de dados rotineiras, travamentos e outros problemas técnicos que impedem o avanço nas análises e validações do CAR. Esta é mais uma medida que, embora possa parecer positiva, adiciona a décima terceira camada de complexidade sem resolver o problema fundamental.

Mas a verdadeira intenção do enfermeiro é outra: é realmente matar. No quarto da UTI, o enfermeiro com a camisa 13 agora empunha uma seringa ainda mais letal: a desapropriação sumária de terras com base em alertas satelitais falíveis. O ministro Flávio Dino, ao determinar que a União promova a desapropriação de imóveis rurais onde forem constatados incêndios dolosos ou desmatamento ilegal, parece ignorar que o corpo jurídico brasileiro já possui anticorpos suficientes para combater tais patologias – Lei 9.605/98, Código Penal, restrições comerciais, apreensões, dentre outras. É como se, desconfiando dos remédios tradicionais já prescritos no prontuário do paciente, o enfermeiro decidisse aplicar uma lobotomia constitucional, extraindo o direito de propriedade sem as garantias do devido processo legal. Até tentou dar uma roupagem de legalidade em uma linha: só pode desapropriar “quando a ilegalidade estiver devidamente comprovada”. Para os atos administrativos, sempre está, não é mesmo? Afinal, eles gozam de presunção de veracidade e legitimidade.

No leito vizinho, a Constituição Federal estremece ao ver o princípio da função social da propriedade sendo transformado em ferramenta de expropriação baseada em diagnósticos imprecisos de um sistema com margem de erro crônica. Este é o décimo terceiro procedimento experimental aplicado ao moribundo Código Florestal, talvez o mais invasivo de todos.

É um mau presságio. O paciente no quarto 13 talvez vá viver somente treze anos. O enfermeiro realmente está disposto a matá-lo com todos os venenos possíveis.

Necessitamos de uma intervenção urgente

É imprescindível uma mudança de paradigma que reconheça o caráter declaratório do sistema e permita aos proprietários implementarem as adequações necessárias sob sua responsabilidade, com fiscalização posterior baseada em resultados. A sobrevivência do Código Florestal demanda soluções inovadoras como parcerias público-privadas para análise, terceirizando parte das avaliações para empresas especializadas em sensoriamento remoto, com pagamento baseado em desempenho e acurácia. O desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial avançada poderia analisar automaticamente imagens de satélite com maior precisão, reduzindo significativamente os falso-positivos que hoje comprometem a credibilidade dos alertas de desmatamento. Complementarmente, um sistema modular progressivo permitiria que o CAR fosse analisado e aprovado por etapas (georreferenciamento, APP, Reserva Legal), desbloqueando benefícios graduais conforme cada módulo fosse validado, criando incentivos reais para o avanço do processo. Sem essas inovações, continuaremos assistindo à agonia de uma lei que poderia trazer imensos benefícios à produção sustentável e à conservação ambiental no Brasil.

O tempo passa. O Código Florestal agoniza no leito número 13, envenenado por novas camadas burocráticas, maldade fruto do enfermeiro Estado. Seus filhos continuam presos por treze voltas de correntes, querendo auxiliar na recuperação, mas impedidos pela própria estrutura do sistema. E a natureza, que deveria ser a maior beneficiária dessa legislação, continua à espera de uma intervenção que priorize a efetividade sobre a burocracia, a substância sobre a forma, e os resultados ambientais sobre os procedimentos administrativos.

A escolha é clara: ou removemos o enfermeiro com o número 13 que envenena o soro e libertamos os filhos para cuidar do pai debilitado, ou testemunharemos o falecimento de mais um Código Florestal, enterrado sob o peso da própria burocracia que deveria salvá-lo. Como bem observou o ministro Flávio Dino ao determinar a manifestação da União sobre o pedido dos partidos, é necessária cautela. A depender da decisão que venha a ser dada no âmbito da ADPF, poderemos ter no Brasil a primeira autorização para a aplicação de sanção administrativa ambiental sem previsão legal, sem probabilidade razoável quanto à existência do ilícito e sem que decorra do exercício regular e válido do poder de polícia – tudo a bem do meio ambiente? E o que dizer da desapropriação baseada em alertas de desmatamento com margens de erro significativas? Com tais medidas, corremos o risco de comprometer 28% da vegetação mundial e a sustentabilidade de 98,3% do território do quinto maior país do planeta.

 

Escrito por

Diovane Franco

Advogado atuante em Direito Ambiental, graduado pela Universidade Católica Dom Bosco, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Faculdades de Ciências Gerenciais e Jurídicas de Sinop. Também é pós-graduado em Direito Administrativo, com ênfase em controle da administração pública em prol dos particulares, aplicando seu conhecimento sobre Direito Administrativo na defesa de produtores rurais em questões ambientais. Também possui grande experiência em Direito Tributário. Deixou a carreira de servidor público na Justiça Federal (TRF-1 e TRF-3) para se dedicar exclusivamente à Advocacia Ambiental. É sócio-fundador do escritório Farenzena & Franco Advocacia Ambiental, dedicado exclusivamente à defesa de pessoas físicas e jurídicas acusadas de infrações contra o meio ambiente, nas esferas administrativa, cível e penal. Atua pujantemente em execuções fiscais de cobrança de multa decorrente de processo administrativo ambiental, elaborando e desenvolvendo embargos à execução, exceção de pré-executividade, bem como eventual ação anulatória ou declaratória visando à extinção de improcedência de execuções fiscais. É especialista em elaboração de defesas e recursos administrativos para cancelar autos de infração ambiental e sua respectiva multa, bem como termos de embargo ambiental, com maior ênfase nas infrações ambientais de desmatamento na Floresta Amazônica.
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